Chico
Buarque no rádio, maquiagem espalhada na mesa, vinho no gargalo. Só poderia ser
a preparação de um grupo de atores para entrar em cena. Nosso entrar em
cena, nem sempre é um "entrar em cena", pode haver
algum longo trajeto até nosso espaço de apresentação, nossos camarins já foram
a rua, o sindicato, a Assembleia Legislativa, a universidade
federal, uma escola, e alguns deles ficavam até em teatros. Nada anormal
se fosse para um grupo de teatro de rua, o que não é nosso caso.
Desta
vez nosso ponto de encontro foi um belo lugar localizado no bairro agora
Farroupilha (cá entre nós, Santana). Solícito e solidário como sempre,
Roberto do Comitê Latinoamericano só não abriu as portas porque eu estava com a
chave há tempos, neste "bar politizado", ele já me aguentou
encenando, cantando, dançando, discursando, bebendo, reclamando da
bebida e a última coisa que esperava é ver duas viaturas da SUSEPE
estacionar na porta do local para transportar a trupe.
Nesta ocasião seríamos as estrelas (nada
daquelas algemas nem do "porta malas" nada anatômico da
apresentação contra o aumento da passagem de ônibus), o Grupo Trilho de Teatro
Popular apresentaria seu teatro na Penitenciária Feminina Madre
Pelletier. Recebi os motoristas com um charuto aceso numa mão e uma
garrafa com vinho na outra, devem ter achado que éramos um bando de artistas
pequeno-burgueses loucos para começar a revolução tomando a bastilha,
infelizmente somos todos assalariad@s e a
maioria disponibilizou o turno em que não trabalha, meu chefe me liberou
com esperanças de que finalmente não me deixassem sair do presídio...
Já
na casa prisional fomos conduzid@s
a um espaço bem organizado e amplo que inclusive dispunha de pequeno
palco, do qual prescindimos pois nosso teatro é sempre olho no olho e
nosso distanciamento é brechtiano e não espacial. Mal havíamos começado o
ensaio musical e uma agente adentrou a sala trazendo o público,
interrompemos e nos posicionamos para começar "A Decisão", peça
didática de Bertolt Brecht, como bem anuncia Adriana no prólogo, que traz
quatro agitadores soviéticos e um jovem camarada chinês em meio à
visceral polêmica sobre os métodos revolucionários e a cruel contra
revolução.
A expectativa
do grupo para aquela apresentação, a expectativa das mulheres que nos
assistiriam, nos arrebatou uma fala que outra e nos levou a algum
erro cênico que não cometemos facilmente. Os olhos de Giovanna
brilharam durante toda a apresentação, mas por sorte os colegas não me
aprontaram o mesmo que na apresentação feita há um ano para crianças em
situação de risco (leia-se expostas à pobreza e sua violência) em São Leopoldo, quando
me deparei com todos chorando já na primeira cena.
A
Decisão é cheia de falas conceituais e muitas delas com
entendimento restrito, a uma determinada época vivida por
países marcados por momentos revolucionários ou formalizado de quem é
estudioso. Foi escrita para ser realizada por militantes operários na
Alemanha de 30. Nosso desafio é, desde sempre, compreendê-la e
apropriar-nos da capacidade do teatro de mostrar-se por vias
próprias, únicas.
Depois
da formalidade e contenção dos primeiros atos, as primeiras risadas, os
primeiros comentários mútuos sobre as cenas que nos chegavam aos ouvidos
como burburinho e os quais cessaram quando a agente que à distância
acompanhava, reprimiu com sinal de silêncio as reações espontâneas. A
quietude foi total e não repreendeu somente as mulheres sob sua
autoridade mas chocou a nós cuja atuação depende muito da
comunicação e reação do público e nunca havíamos visto um moderador de
humores em nossas obras para adultos.
A
cena mais esperada por nós e que, sabíamos, mais surpreenderia
as detentas, era a "4" em que o policial que
reprime trabalhadores numa fábrica - personagem brilhantemente construído
e encenado por Carol - é morto durante uma briga. A fala dos operários
envolvidos na briga: nós matamos um policial, foi antecipado por
uma das mulheres: eles mataram a polícia.
A
música, componente essencial da peça, tem arranjos inspiradores nos quais
Baiano e Gabriel são um espetáculo à parte com violão, bandolim, xilofone
e pequenos instrumentos dos mais variados, e é durante a
trilha sonora que eu abandono a agitadora contida
e ponderada e evoco uma Ana sinuosa que aflora com a dança.
Em meio a quebras de quadril e olhares provocadores fitei pares de olhos
pintados e algumas caras bonitas que com certeza já experimentaram - por idade
ou malícia - a sensualidade muito mais que eu, mas os olhares que
encontrei deixavam claro que minha sensualidade ali estava em ser livre,
em fazer o que gosto, o que acredito, em não estar maculada socialmente, minha
sensualidade, ali, humilhava. Terminada a apresentação em nosso habitual
debate sobre a peça, uma delas pediu o violão, eu ofereci o violão e o
violonista, deixei Gabriel roxo de vergonha e para trás aquela impressão
de que, naquele momento, as atrizes éramos mulheres e elas apenas
detentas.
Durante
o debate, uma das primeiras perguntas, justamente feita pela moça que pediu o
violão, foi "se nós éramos mesmo comunistas", a do lado
perguntou se é muito difícil a batalha dos atores até conseguir fazer uma
novela. Os graus de alienação e consciência se assemelham e reproduzem a
sociedade além grades. As perguntas não pararam por aí e continuavam sobre o
texto, sobre a dificuldade de sua linguagem, sobre os atores, sobre a
interpretação. Ao responder um dos questionamentos Dani disse estarmos um
pouco apreensivos antes da apresentação, rapidamente uma mulher
interviu indagando se essa "apreensão" se devia ao fato
do local ser um PRESÍDIO. Esclarecemos que nossa angústia se
devia ao tempo reduzido que tivemos para ensaiar desde que a data foi
marcada, cujo fator era agravado pela falta de um ator sem o qual tivemos
que alterar o roteiro. Saber que faríamos nosso teatro, que é
político, pedagógico, social e nossa bandeira em defesa da justiça e
da alegria, para pessoas que vivem privadas de liberdade não era
angústia, era diferente, era uma emoção inusitada, inédita.
A
responsável pela ponte Madre Pelletier - Grupo Trilho foi Maynar,
amiga, uruguaia, siamesa na forma e no signo. Maynar viu "A
Decisão" pela primeira vez em temporada no Teatro de Câmara de Porto
Alegre, à época gostou e comentou, Fábio gostou do comentário dela e então
estavam apresentados ela e o grupo. Psicóloga estagiária sempre
colocou suas teorias em prática e através dela eu já havia participado de
oficina sobre Escrita no semi-aberto feminino. Na Madre conhecemos
Simone, a vice-diretora com a qual projetamos a volta e Faltemara, psicóloga,
futura mãe de Lorenzo, mais conhecida como FAL (Fuzil Automático
Leve), não por milica e sim por perpicaz e certeira nas conotações.
Ao
despedir-me lhes disse que voltaríamos, mas que bruta eu, uma delas
saltou:
-
Espero não estar mais quando voltarem.
Ana
Campo
Nenhum comentário:
Postar um comentário