quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Experiência no Madre Pelletier - Crônica de Ana Campo

"ELES MATARAM A POLÍCIA"

Chico Buarque no rádio, maquiagem espalhada na mesa, vinho no gargalo. Só poderia ser a preparação de um grupo de atores para entrar em cena. Nosso entrar em cena, nem sempre é um "entrar em cena", pode haver algum longo trajeto até nosso espaço de apresentação, nossos camarins já foram a rua, o sindicato, a Assembleia Legislativa, a universidade federal, uma escola, e alguns deles ficavam até em teatros. Nada anormal se fosse para um grupo de teatro de rua, o que não é nosso caso.

Desta vez nosso ponto de encontro foi um belo lugar localizado no bairro agora Farroupilha (cá entre nós, Santana). Solícito e solidário como sempre, Roberto do Comitê Latinoamericano só não abriu as portas porque eu estava com a chave há tempos, neste "bar politizado", ele já me aguentou encenando, cantando, dançando, discursando, bebendo, reclamando da bebida e a última coisa que esperava é ver duas viaturas da SUSEPE estacionar na porta do local para transportar a trupe.

Nesta ocasião seríamos as estrelas (nada daquelas algemas nem do "porta malas" nada anatômico da apresentação contra o aumento da passagem de ônibus), o Grupo Trilho de Teatro Popular apresentaria seu teatro na Penitenciária Feminina Madre Pelletier. Recebi os motoristas com um charuto aceso numa mão e uma garrafa com vinho na outra, devem ter achado que éramos um bando de artistas pequeno-burgueses loucos para começar a revolução tomando a bastilha, infelizmente somos todos assalariad@s e a maioria disponibilizou o turno em que não trabalha, meu chefe me liberou com esperanças de que finalmente não me deixassem sair do presídio...


Já na casa prisional fomos conduzid@s a um espaço bem organizado e amplo que inclusive dispunha de pequeno palco, do qual prescindimos pois nosso teatro é sempre olho no olho e nosso distanciamento é brechtiano e não espacial. Mal havíamos começado o ensaio musical e uma agente adentrou a sala trazendo o público, interrompemos e nos posicionamos para começar "A Decisão", peça didática de Bertolt Brecht, como bem anuncia Adriana no prólogo, que traz quatro agitadores soviéticos e um jovem camarada chinês em meio à visceral polêmica sobre os métodos revolucionários e a cruel contra revolução.

A expectativa do grupo para aquela apresentação, a expectativa das mulheres que nos assistiriam, nos arrebatou uma fala que outra e nos levou a algum erro cênico que não cometemos facilmente. Os olhos de Giovanna brilharam durante toda a apresentação, mas por sorte os colegas não me aprontaram o mesmo que na apresentação feita há um ano para crianças em situação de risco (leia-se expostas à pobreza e sua violência) em São Leopoldo, quando me deparei com todos chorando já na primeira cena. 

A Decisão é cheia de falas conceituais e muitas delas com entendimento restrito, a uma determinada época vivida por países marcados por momentos revolucionários ou formalizado de quem é estudioso. Foi escrita para ser realizada por militantes operários na Alemanha de 30. Nosso desafio é, desde sempre, compreendê-la e apropriar-nos da capacidade do teatro de mostrar-se por vias próprias, únicas. 

Depois da formalidade e contenção dos primeiros atos, as primeiras risadas, os primeiros comentários mútuos sobre as cenas que nos chegavam aos ouvidos como burburinho e os quais cessaram quando a agente que à distância acompanhava, reprimiu com sinal de silêncio as reações espontâneas. A quietude foi total e não repreendeu somente as mulheres sob sua autoridade  mas chocou a nós cuja atuação depende muito da comunicação e reação do público e nunca havíamos visto um moderador de humores em nossas obras para adultos. 

A cena mais esperada por nós e que, sabíamos, mais surpreenderia as detentas, era a "4" em que o policial que reprime trabalhadores numa fábrica - personagem brilhantemente construído e encenado por Carol - é morto durante uma briga. A fala dos operários envolvidos na briga: nós matamos um policial,  foi antecipado por uma das mulheres: eles mataram a polícia. 

A  música, componente essencial da peça, tem arranjos inspiradores nos quais Baiano e Gabriel  são um espetáculo à parte com violão, bandolim, xilofone e pequenos instrumentos dos mais variados, e é durante a trilha sonora que eu abandono a agitadora contida e ponderada e evoco uma Ana sinuosa que aflora com a dança. Em meio a quebras de quadril e olhares provocadores fitei pares de olhos pintados e algumas caras bonitas que com certeza já experimentaram - por idade ou malícia - a sensualidade muito mais que eu, mas os olhares que encontrei deixavam  claro que minha sensualidade ali estava em ser livre, em fazer o que gosto, o que acredito, em não estar maculada socialmente, minha sensualidade, ali, humilhava. Terminada a apresentação em nosso habitual debate sobre a peça, uma delas pediu o violão, eu ofereci o violão e o violonista, deixei Gabriel roxo de vergonha e para trás aquela impressão de que, naquele momento, as atrizes éramos mulheres e elas apenas detentas.    

Durante o debate, uma das primeiras perguntas, justamente feita pela moça que pediu o violão, foi "se nós éramos mesmo comunistas", a do lado perguntou se é muito difícil a batalha dos atores até conseguir fazer uma novela. Os graus de alienação e consciência se assemelham e reproduzem a sociedade além grades. As perguntas não pararam por aí e continuavam sobre o texto, sobre a dificuldade de sua linguagem, sobre os atores, sobre a interpretação. Ao responder um dos questionamentos Dani disse estarmos um pouco apreensivos antes da apresentação, rapidamente uma mulher interviu indagando se essa "apreensão" se devia ao fato do local ser um PRESÍDIO. Esclarecemos que nossa angústia se devia ao tempo reduzido que tivemos para ensaiar desde que a data foi marcada, cujo fator era agravado pela falta de um ator sem o qual tivemos que alterar o roteiro. Saber que faríamos nosso teatro, que é político, pedagógico, social e nossa bandeira em defesa da justiça e da alegria, para pessoas que vivem privadas de liberdade não era angústia, era diferente, era uma emoção inusitada, inédita.

A responsável pela ponte Madre Pelletier - Grupo Trilho foi Maynar, amiga, uruguaia, siamesa na forma e no signo. Maynar viu "A Decisão" pela primeira vez em temporada no Teatro de Câmara de Porto Alegre, à época gostou e comentou, Fábio gostou do comentário dela e então estavam apresentados ela e o grupo. Psicóloga estagiária sempre colocou suas teorias em prática e através dela eu já havia participado de oficina sobre Escrita no semi-aberto feminino. Na Madre conhecemos Simone, a vice-diretora com a qual projetamos a volta e Faltemara, psicóloga, futura mãe de Lorenzo, mais conhecida como FAL (Fuzil Automático Leve), não por milica e sim por perpicaz e certeira nas conotações. 


Ao despedir-me lhes disse que voltaríamos, mas que bruta eu, uma delas saltou:

 - Espero não estar mais quando voltarem. 

Ana Campo

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